O instituto que se viciou no negócio (Público)
Na sede do INESC TEC no Porto há dezenas de corredores onde ficam os gabinetes assinalados com o nome de investigadores, há salas abertas onde centenas de jovens se dedicam à programação em frente de computadores, há espaços para lazer e para refeições e, não fosse a falta de salas de aulas, não era difícil confundi-la com uma universidade. Só quando se quer descer ao andar abaixo do piso térreo para visitar o laboratório de energia é que se percebe que há ali algo de diferente. Para se chegar à sala onde Luís Seca e uma equipa de dez investigadores trabalham é preciso um código de acesso para introduzir no elevador. O que ali se faz, entre computadores com imagens em permanente animação, contadores electrónicos e máquinas com redes intrincadas de fios não está disponível ao olhar de todos. Ali estudam-se soluções de futuro para as “redes inteligentes” (smart grids) de electricidade e uma descoberta, uma patente ou um protótipo pode valer muito dinheiro.
O Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores – Tecnologia e Ciência, que comemora por estes dias 30 anos de existência, é muitas vezes considerado como um dos melhores exemplos da boa articulação que se faz em Portugal entre a produção de ciência e a sua transferência para as empresas. Essa articulação esteve na base da sua fundação, em 1985, através da instalação no Porto de uma sucursal do INESC nacional (em Lisboa), no qual as universidades repartiam com os CTT e os TLP as estratégias e os encargos de promover a qualificação da ciência e da economia nacional. Mas se há 30 anos o instituto do Porto valia uns 20% da rede nacional do INESC (que se instalou também em Braga, Aveiro e Coimbra), “hoje deve representar talvez uns 60%”, nota Pedro Guedes de Oliveira, um académico que presidiu ao instituto do Porto entre 1995 e 2005.
Explicar esse percurso que transformou uma pequena unidade de investigação no potencial da fibra óptica para o futuro das telecomunicações num gigante que factura 14 milhões de euros e que mobiliza 650 investigadores, dos quais 250 doutorados, implica uma pergunta: o que tem o INESC do Porto, agora INESC TEC, de especial? José Manuel Mendonça, o actual presidente, considera três razões: a primeira é o foco do trabalho, “que obriga a que toda a investigação esteja orientada para ter impacte económico e social”; o segundo relaciona-se na forma como o INESC TEC gere o fluxo do conhecimento, desde a investigação até à sua aplicação em soluções capazes de ter interesse para as empresas ou para a sociedade; finalmente, a capacidade de pôr a trabalhar em áreas industriais de ponta não apenas engenheiros ou físicos, mas também “designers” ou músicos e de ter capacidade de se articular com outras instituições – esta segunda-feira haverá um concerto na Casa da Música organizado pelo instituto no qual os smartphones do público vão ser usados como instrumentos.
Os números são expressivos. Entre 2011 e 2014 os artigos publicados pelos investigadores do INESC cresceram mais de 50% – foram quase 350 nesse ano. Há mais de 30 patentes registadas em nome do instituto. No ano passado mais de 150 quadros altamente qualificados, dos quais 21 doutorados, saíram das suas instalações para o tecido económico: “Os nossos investigadores não têm problemas com o desemprego”, diz Pedro Guedes de Oliveira.
Nos últimos 13 anos nasceram nos seus laboratórios 12 empresas que depois vieram a autonomizar-se (o chamado spin-off), entre as quais a FiberSensing, que acabaria por ser comprada pela multinacional alemã HBM. Mas talvez ainda mais importante do que as estatísticas pode ser o impacte que o conhecimento produzido e transferido do INESC teve em empresas como a Efacec ou em indústrias como o calçado, cuja logística industrial é geralmente considerada como uma das mais avançadas do mundo.
Para se chegar aqui há, no entanto, de notar uma vantagem acumulada logo nos primórdios do INESC no Porto. Após a sua criação, foi possível construir e equipar uma base de investigação que na altura estava muito à frente da que existia no mundo académico nacional. Pimenta Alves tinha acabado de se doutorar em Manchester (em 1982) e, até que as empresas públicas de telecomunicações investissem 250 mil contos no projecto, recorda-se de “não haver computadores nas universidades” e de sentir um clima de “penúria total” que impedia os recém-doutorados de prosseguir as suas investigações. O INESC do Porto, que pertencia metade/metade à universidade e às duas empresas públicas CTT e TLP, foi a abertura de uma porta para essa geração de jovens doutorados no estrangeiro que se acolhia sob a égide de um guru: Manuel Ferreira de Oliveira, que até Abril deste ano foi presidente da Galp. “Somos todos ‘filhos’ dele”, reconhece Pedro Guedes de Oliveira.
O caminho das empresas
Inicialmente, a tarefa dessa geração dirigiu-se para o conhecimento do potencial da fibra óptica para levar voz, dados e imagem a casa de todos. O projecto SIFO avançou, “mas estava muito à frente do seu tempo”, lembra Pimenta Alves, que integrou a primeira das três direcções do INESC nestes 30 anos. Não chegaria à fase do protótipo (as empresas foram privatizadas, as fronteiras abriram-se e novas tecnologias impuseram-se), mas a equipa de investigação que o realizou ficou a par do estado da arte em electrónica que se fazia no Laboratório Europeu de Física de partículas (CERN, em Genebra) e em algumas universidades europeias. Nomes como José António Salcedo, Manuel Barros ou António Pereira Leite fazem parte dessa primeira vaga de investigadores que depois deixariam marca em empresas ou na academia.
Como as empresas que financiavam o projecto não exigiam exclusividade, a equipa começou a apostar em outras áreas. Uma delas, nas quais Pimenta Alves se destacou, foi o vídeo digital. Em 1999 o INESC foi escolhido pela BBC para montar o seu novo estúdio digital na sede, em Londres. O software utilizado para a sua gestão, o Orbit, foi integralmente produzido no Porto. A aventura “aconteceu antes do tempo”, nota Pimenta Alves. “Na altura, não prosseguiu, mas a ideia do estúdio digital está de volta”, nota. Entretanto, as sementes do projecto ficaram. Hoje “há umas 60 ou 70 pessoas a trabalhar no Porto para o mercado internacional do broadcasting através de redes de computadores”, diz Pimenta Alves. Fazem-no através de empresas como a MOG, a Glookast ou a Mediagaps.
Borges Gouveia, um engenheiro de sistemas de computadores que ajudou a fundar o INESC Porto e se tornou presidente do INESC nacional entre 1985 e 1991, queria mais. “Queria que entrássemos em outras áreas”, lembra Pimenta Alves. Como a energia. Ou as indústrias tradicionais. Mas tanta ambição não batia certo com as permanentes queixas de falta de autonomia do Porto em relação a Lisboa. O mal-estar torna-se um problema que seria resolvido em 1995, quando o INESC nacional reduz a sua participação no instituto do Porto para uma posição minoritária. É nessa altura que Pedro Guedes de Oliveira sai da Universidade de Aveiro para se tornar presidente do novo instituto.
É sob a sua égide que “começa a estudar o que se podia fazer com a indústria tradicional” do Norte que, na época, sob os auspícios dos fundos europeus, estava a receber vultuosos investimentos na modernização. José Carlos Caldeira, actual presidente da Agência de Inovação, será o motor desta aproximação. E o calçado, onde o INESC encontrou um espírito de abertura maior, tornou-se o maior foco dessa estratégia.
No prazo de uma década, a cumplicidade entre o INESC e o sector criou condições não apenas para a criação de uma nova tecnologia para corte de peles com jactos de água (tecnologia que é exportada através da empresa CEI), como levou à produção de sistemas de gestão avançados da cadeia industrial que são hoje um dos principais trunfos do sector. Empresas como a Kyaia, que tem um contrato de longa duração com o INESC, podem hoje introduzir na linha de produção um único par de sapatos diferente sem que tenham de parar as máquinas – um ganho de flexibilidade enorme.
Entre a criação de programas de gestão inteligente das redes eléctricas ou a construção de um submarino robô para a exploração do mar em grandes profundidades (em parceria com o Instituto Superior de Engenharia do Porto), entre investigação para a EDP ou o desenvolvimento de uma tecnologia que capta imagens em tanques de aquacultura para determinar o número e o estado de desenvolvimento dos peixes, o INESC foi crescendo, mas sofreu os apertos da crise entre 2010 e 2013. Agora, pensa novamente num novo salto. As suas receitas dependem num terço do orçamento do Estado (e dos fundos estruturais); outro terço vem de programas europeus e a parte que falta resulta de contratos com empresas. O caminho passa por aqui.
Uma das suas maiores fontes de confiança está na mudança que os seus responsáveis e mentores dizem estar a acontecer nas empresas portuguesas, que começam a deixar de olhar com suspeição para os “doutores” das universidades. “Há uns anos éramos génios num país de ‘grunhos’. Isso desapareceu”, diz, com um sorriso, Pedro Guedes de Oliveira.
Sem deixar de ser um centro de saber e de investigação, o INESC TEC (agora com esta designação porque agrega unidades das universidades do Minho e de Trás-os-Montes) segue uma preocupação: “Trabalhar com mais empresas”, diz José Manuel Mendonça, que após dez anos começa a pensar na sua sucessão no instituto que no seu mandado conheceu um enorme desenvolvimento. Ou seja, cumprir a sua missão. Porque para Mendonça, que trabalhou na indústria em vários países europeus, para Guedes de Oliveira ou para Pimenta Alves, os engenheiros são gente que gosta de pôr as máquinas a andar.