Governo legitima mudança na política científica com dados descontextualizados
O primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, deu esta semana que passou nota negativa a um dos poucos aspectos que antes, no próprio programa de governo do PSD, tinha sido referido como um bom exemplo: a política de ciência dos governos do Partido Socialista, tutelada por Mariano Gago. Era preciso, segundo Passos Coelho citado pela agência Lusa, “mudar a filosofia das políticas públicas que estavam a ser executadas”.
Como é que o Governo PSD-CDS/PP chegou a estas conclusões? “Durante vários anos, conseguimos transferir mais recursos para o sistema e atribuir mais bolsas. No entanto, quando medimos o número de patentes registadas, o número de artigos científicos publicados, quando medimos o resultado e a qualidade desse trabalho, passávamos de indicadores que pareciam comparar[-nos] muito bem com os países com que gostamos de nos comparar para [nos compararmos] muito mal”, disse o primeiro-ministro.
Qualidade fraca nas publicações científicas, poucas patentes, muito investimento em ciência e muitos doutorados em Portugal: estes argumentos têm sido arremessados pelos deputados do PSD e do CDS/PP nas últimas semanas, ouvidos em sessões parlamentares e em comissões na Assembleia da República dedicadas à ciência.
Os dados apoiarão realmente esta tese? “Infelizmente, o primeiro-ministro não sabe do que está a falar, pelo que não consegue transmitir uma mensagem com sentido”, diz ao PÚBLICO Carlos Fiolhais, físico e professor na Universidade de Coimbra. “Podia e devia preparar uma declaração sobre ciência, em vez de falar de improviso num português rudimentar.”
Comecemos então pelo investimento. Em 2001, a percentagem do produto interno bruto (PIB) investida em ciência (que mostra o esforço de um país nesta área) era de 0,77. Atingiu um máximo em 2009, com 1,64% do PIB e baixou até 1,5% em 2012, havendo assim um desinvestimento nos últimos anos. Em 2012, a média europeia da percentagem do PIB investido na ciência era de 2,06%. Há países muito acima: Dinamarca (2,99%), Áustria (2,84%), Eslovénia (2,80%), Finlândia (3,55%), Suécia (3,41%).
A disparidade no PIB investido face a outros países e a própria riqueza produzida pelo país traduzem-se em muito menos dinheiro para a ciência portuguesa. Em 2012, por habitante português, gastou-se apenas 262,8 euros em ciência. A média europeia é de 461 euros por habitante (os valores em euros já estão ajustados em relação à paridade do poder de compra). Nos primeiros lugares estão a Finlândia, Áustria, Alemanha, Dinamarca, Noruega. Assim, usando os termos de Pedro Passos Coelho, nos “países com que gostamos de nos comparar”, os cientistas trabalham com muito mais dinheiro do que os investigadores portugueses.
Em relação aos recursos humanos, o panorama também não é brilhante. É certo que o número de novos doutorados formados em Portugal teve uma evolução muito significativa: passou de 5,7 por 100.000 habitantes em 1995, para 17,5 em 2011. Mas, apesar de haver cerca de 50.000 investigadores em Portugal em 2011, o número de técnicos nesse ano era de apenas 3592. Se olharmos para todos os profissionais que completaram o ensino superior nas áreas de ciência e tecnologia, e que estão a trabalhar nestas actividades, Portugal está na cauda da Europa: apenas 13,7% da população activa estava, em 2012, integrada em actividades de ciência e tecnologia, enquanto a média europeia era de 18,9%.
“O número médio de novos doutores na União Europeia em 2011 por 100.000 habitantes foi de 22,9”, diz-nos por sua vez Carlos Fiolhais. “Portanto, se queremos continuar o caminho de aproximação à média europeia, a convergência tem de continuar, o que só se consegue continuando a investir ao mesmo ritmo e não quebrando o investimento que se estava a fazer.”
No entanto, de 2012 para 2013, as novas bolsas de doutoramento atribuídas pela FCT caíram (incluindo as integradas nos novos programas de doutoramento da FCT): passaram de 1198 para 729 bolsas. Números conhecidos em meados de Janeiro e que desencadearam protestos.
Apesar deste cenário ainda longe do nível médio de financiamento e de recursos humanos europeus dedicados à investigação, mesmo utilizando os parâmetros do primeiro-ministro (as publicações científicas e as patentes), os dados mostram que a evolução da ciência portuguesa foi positiva.
O número de publicações científicas subiu em poucos anos, passando de 350 por milhão de habitante em 2001 para 1081 em 2012, aproximando-se muito da média europeia que é de 1170, de acordo com os dados da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC). As ciências humanas e as ciências sociais foram as áreas que aumentaram mais o número de publicações entre 2005 e 2012, com um crescimento médio anual de 26% e 21% respectivamente.
“A qualidade, que pode ser medida pelo número de citações dos artigos, aumentou também”, refere Carlos Fiolhais. No quinquénio 2008-2012, o impacto das citações (quando um trabalho é mencionado noutro trabalho) relativo às publicações nas áreas da agricultura, engenharia, neurociências e comportamento, imunologia, física e ciências espaciais estava acima da média da União Europeia dos 15 países. Se tivermos em conta todos os países do mundo, há muitas mais áreas em que Portugal está acima da média. Todos estes indicadores contradizem assim as palavras do primeiro-ministro.
O número de patentes portuguesas na Organização Europeia de Patentes passou de 4,04 por milhão de habitantes em 2001 para 7,09 em 2011. O máximo, atingido na década passada, foi em 2007, com 11,68 patentes por milhão de habitantes. O valor de 2011 está muito longe de outros países da Europa, como Espanha (35,32 patentes por milhão de habitantes), Alemanha (272,25) ou Dinamarca (204,9).
Mas José Manuel Mendonça, presidente do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores (INESC) do Porto, um dos 26 laboratórios associados no país, contesta a utilização deste indicador para avaliar o desempenho do tecido científico. “As patentes são importantes quando têm um valor económico associado”, diz ao PÚBLICO, lembrando que, à medida que o tempo passa, é cada vez mais caro manter uma patente.
Este professor da Universidade do Porto lembra que o tecido empresarial português é fraco em indústria química ou biotecnológica, onde as patentes fazem sentido, mas é forte no vestuário ou no calçado, onde impera muitas vezes o segredo industrial. No entanto, a entrada da inovação vinda do tecido científico não deixa de ser importante: “O calçado recebeu muita tecnologia do sistema científico nacional das áreas dos materiais e da robótica. Há um cluster de bens e equipamentos que vem através da universidade.”
Tanto para José Manuel Mendonça como para Carlos Fiolhais, o impacto científico na indústria deve ser avaliado de outra forma: através da criação de novas empresas ligadas à investigação, da exportação de produtos e serviços com ciência incorporada ou pelos contratos feitos entre universidades e empresas.
“Estamos 30 anos atrasados em relação ao desenvolvimento da ciência feita nos outros países. Não tem lógica estar a fazer comparações directas”, critica José Manuel Mendonça, referindo também que o tecido industrial não é robusto e que só há poucos anos é que passou a incorporar licenciados. “Há muitas empresas que não precisam de doutorados, muitas vezes precisam só de bons engenheiros.”
Segundo dados de 2009, apenas 2,6% dos doutorados portugueses trabalhavam em empresas. O grupo Portugal Telecom, número um em investimento em investigação e desenvolvimento em Portugal (gastou 208 milhões de euros em 2011), tem só 4,5 doutorados a trabalhar a tempo inteiro, de acordo com a DGEEC. Porquê? “A PT é uma empresa fornecedora de serviços”, diz José Manuel Mendonça, acrescentando que o dinheiro que gasta em investigação pode ir para contratos com outras empresas.
“No INESC Porto, temos projectos com a PT Inovação. Em alguns casos, envolvemos jovens que depois vão trabalhar para a empresa”, explica. A injecção de pessoal especializado nas empresas a partir das universidades e laboratórios também é um papel importante destas instituições, refere José Manuel Mendonça. Discorda da forma como a política científica está a ser discutida na esfera pública: “Não é com análises superficiais que se faz este debate.”